quarta-feira, 4 de novembro de 2009


Primavera em mim - Parte I


A campainha tocou mais uma vez no horário habitual e meu coração, que já sofria a ansiedade da espera, se aliviou. Corri até a porta e abri-a com o mesmo semblante de surpresa. Ali estava ela a perfumar a entrada do meu apartamento, a alegrar a palidez da porta com seu amarelo inebriante.
Era desse modo que diariamente ele me dava bom dia: com uma flor amarela deixada à soleira da porta de meu apartamento. Era quase sempre de uma espécie diferente, todavia sempre amarela.
Há dois anos ele se mudara para esse prédio, porém somente após vários meses de sua chegada conheci-o, aliás encontrei-o acidentalmente na portaria. Ao cruzamos a porta do hall, nos esbarramos e, desconcertados pela situação, sussurramos um rápido pedido de desculpas, entretanto desde então passamos a nos encontrar sempre.
Até parecia que provocávamos os encontros. Sempre no mesmo horário nos encontrávamos na entrada do prédio. A freqüência era tanta que, algum tempo depois, nos apresentamos um ao outro e passamos a, vez ou outra, conversar ali mesmo, sob o olhar do porteiro que guardava não só a porta, mas também nossos gestos.
Aos poucos, fomos necessitando de mais tempo e privacidade para nos conhecermos melhor, por isso passamos a nos encontrar à tardinha em frente à gruta que existia no prédio. Ali havia um banco, embaixo de uma grande árvore, onde podíamos ficar conversando por horas, sem que ninguém nos ousasse atrapalhar.
Logo um encanto nos envolveu. Talvez por sermos dois solitários de meia-idade dividindo a vida apenas com estranhos; talvez por sermos duas pessoas marcadas por cicatrizes tão profundas que não nos permitíamos nos dar a conhecer, ou mesmo por sermos adultos ensimesmados na descoberta de um novo mundo.
Um dia lhe falei sobre meu sonho de cultivar flores, especialmente amarelas, o que lhe fez, a partir daquela confidência, saudar sempre meu dia com flores amarelas. Descobrira também minhas preferidas: os girassóis os quais, por serem mais ramosos, só apareciam à minha porta em dias especiais.
Somente dois limites nasceram ante nós: nosso passado e nosso apartamento. Nunca tocamos no primeiro nem adentramos o segundo, mas isso jamais limitou nossa cumplicidade.
O tempo nos tornou amantes, embora não vivêssemos como tal. Não precisávamos nos tocar para nos amarmos profundamente: o próprio amor já nos unira de modo indissociável. O único toque ao qual nos permitíamos era o das mãos, que pareciam unir nossas almas.
Há duas semanas, ele me convidou para um jantar à luz de velas. Surpreendentemente, no corredor que dividia nossos apartamentos, ele estendeu toalhas de bambu e sobre elas pôs pratinhos de cerâmica acompanhados de hashis. Seria um jantar japonês como há tempos me prometera.
Nessa noite, ele fez algo que nunca fizera antes. Pediu para que eu me pusesse bem à sua frente e, silenciosamente, passou a me olhar concentrado, como se estudasse cada traço do meu rosto, enquanto eu queria rir de vergonha. Lentamente, começou a tocar com delicadeza minha boca e, com seu indicador, contornar meus lábios como se os quisesse desenhar na memória ou imprimir cada pequeno sulco em sua digital.

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